sexta-feira, 3 de junho de 2016

Trilhos na noite


Araraquara, para quem não conhece, é cortada ao meio por linhas da antiga estrada de ferro.
Minha família, morava de um dos lados. O lado chamado de Vila Xavier.
Do outro lado, ficava o centro da cidade.
Assim, quando precisávamos comprar algo no centro, tínhamos que atravessar os trilhos e não era apenas uma única linha. Haviam várias ramificações. Várias de manobras, linhas secundárias, as de abastecimento no CEAGESP e a linha que conduzia as composições e máquinas para a gigantesca oficina de reparos e manutenção.
Existiam três "pontilhões" ou viadutos, como preferir chamar. Um da 22 de agosto, um da Barroso e um na fonte, que passavam por cima das linhas da estrada de ferro e um túnel ao lado da antiga estação ferroviária, que passava por baixo das linhas férreas.
Entretanto, quando morávamos na rua Ceará, lá quase perto do fim, ficava mais fácil cortar caminho pelos trilhos para chegar mais rápido ao Estádio da Ferroviária, nos dias de jogo, as piscinas da ferroviária nos dias de treino na escola de natação ou mesmo para curtir um dia quente.
Atravessar os trilhos, ali perto dos galpões da CEAGESP, era também o caminho mais curto para assistir shows no Gigantão. Gigantão é nosso estadio poliesportivo.
Passar por ali, de noite, no escuro, com o caminho iluminado somente pela lua e, as vezes, nem por ela, era uma aventura a parte.
Incontáveis vezes por ali passei, driblando pedras, tocos, molhando calçado em poças de água ou derrapando em lamaçais.
Lembro que em uma das noites, fizemos o "Warm Up" enquanto caminhávamos pelos trilhos, compartilhando entre os amigos, uma garrafa de licor de menta.
Em outra noite, já depois de termos nos mudado da rua ceará para a 22 de agosto, fui atravessar os trilhos, acompanhado de uma recém paquera e pelo meu "pretenso futuro cunhado"que  já estava considerando nosso encontro um noivado oficial.
Esta noite foi super divertida, porque, não sei de onde ele tirou da cabeça, eu deveria ser filhinho de papai e não devia ter experiência em atravessar trilhos.
Ele foi dando dicas de como caminhar nos trilhos. Querendo ensinar e proteger o seu "futuro valioso cunhado". Ia orientando onde pisar, pelo caminho todo, até que chegamos ao local onde um portão alto de grade, separava duas áreas dos trilhos.
Ali teríamos que pular escalar e transpor o portão.
Ele passou. Passou a minha paquera e ele ficou olhando para mim.
Deu suas orientações de como escalar e ficou todo temeroso se o filhinho de papai ia conseguir vencer tão enorme e difícil obstáculo.
Quando ele piscou, me viu do lado de lá do portão.
Acho que até hoje ele nem imagina o que aconteceu.
Ele não tinha perguntado se eu já havia pulando algum portão, alguma vez na vida. Sequer lembrou de perguntar se eu conhecia os trilhos ou já tinha passado por lá antes.
Tinha partido ele, do pressuposto que era "burguesinho" e nada sabia.
Então, para ele foi um espanto quando descobriu que eu tinha intimidade com os trilhos da estrada de ferro em noites escuras.